Passados 23 anos da primeira apreensão de crack em São Paulo, a “raspa da canela do capeta” – como era conhecida a droga quando surgiu na periferia da zona leste, nos anos 1980 – avança por todas as regiões do Estado e faz do enfrentamento ao problema um dos principais desafios para cidades pequenas e médias.
Mapeamento da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) atualizado em tempo real pelas prefeituras revela que 194 cidades paulistas declararam ter alto nível de problema decorrente do consumo de crack – quase um terço dos 645 municípios do Estado.
Subproduto sujo e barato da cocaína, a droga que deve seu nome aos estalos que emite ao ser queimada virou praga em municípios como Águas de Lindoia e Serra Negra (estâncias hidrominerais), Campos do Jordão (a “Suíça brasileira”), Ilhabela (reduto turístico no litoral norte) e Cananeia (patrimônio da humanidade).
O crack afeta também cidades-referência, como Ibitinga (a capital do bordado), Monte Alegre do Sul (a capital do morango) e Louveira (2.º maior PIB per capita do País).
O secretário nacional de Políticas sobre Drogas, Vitore Maximiano, admite que a situação é grave. “O uso do crack surgiu mais acentuadamente nas grandes cidades e, especialmente, nas metrópoles. Mas temos notado que o crack também é droga presente em pequenos e médios municípios”, afirma.
Durante quatro meses, a reportagem do Estado constatou essa realidade ao percorrer 6,6 mil quilômetros para levantar dados, ouvir autoridades federais, estaduais e municipais, visitar clínicas, comunidades terapêuticas e pontos de consumo.
No caminho, visitou 13 municípios que denunciaram alto ou médio nível de problema com crack e conversou com usuários e parentes. Ibitinga, com 53 mil habitantes, é um exemplo entre os rincões do sossego de como o consumo do crack pode virar uma epidemia. “A sensação é loca (sic). Fica encanado, a gente paga para ter medo. Não dá futuro para ninguém, né, cara?”, diz Felipe (nome fictício), de 19 anos, dependente desde os 15.
Após seis meses internado, ele saiu poucos dias antes da entrevista e foi direto para a “biqueira” – ponto de venda de droga. “Comprei 20 gramas de crack. Estou aqui faz cinco dias virado (sem dormir)”, conta, em uma área conhecida como cracolândia – referência ao local de venda e consumo mais conhecido do País, na Luz, na capital.
Em sua configuração no interior, a “cracolândia” de Ibitinga funciona em um matagal atrás do cemitério. “Não vai filmar minha cara”, adverte Lobão (nome fictício), de 37 anos, aparência de 50, enquanto se prepara para fumar. Ele usa boné, carrega em uma das mãos isqueiro e lata que serve como cachimbo e na outra uma pedra.
“Fui gerente de grande empresa, andei em carrão e hoje não tenho nada.” Felipe e Lobão fazem parte de uma população aparentemente invisível, mas escancarada para quem quiser ver. “É quase uma cracolândia. As pessoas identificam o bairro como sendo delas. Via de regra, polícia não faz ronda lá”, conta Talita Valle, coordenadora do Núcleo de Saúde Mental da prefeitura, porta de entrada na rede pública para dependentes.
Em estâncias balneárias o crack também avança. Em Ilhabela, cidade com 28 mil habitantes, a prefeitura fez um levantamento sobre os usuários de droga para pedir uma unidade ambulatorial especializada para dependentes. “Está em todos os lugares. E, infelizmente, não conseguimos ficar fora disso”, afirma a secretária municipal de Saúde, Lúcia Reale Colucci. No município, foram identificados 206 usuários.
Com 24 mil habitantes, Martinópolis, no oeste paulista, é outra estância turística a enfrentar a ofensiva do crack. “A gente percebe esse número crescente a cada dia”, explica a psicóloga Mariana Malavolta, de 31 anos, coordenadora do Centro de Atenção Psicossocial (Caps).
“Na praça, tem consumo de madrugada, independentemente da droga. Já existe até um preconceito de vir para praça à noite”, diz Ana Flávia Sakamoto, de 17 anos. A droga também invadiu a serra e chegou a Campos do Jordão. O consumo do crack acontece à noite em uma das praças centrais, atrás do mercado municipal, e também de dia, às escondidas, nas escadarias abertas no meio dos quarteirões.
O problema se reflete também no número de internações do único hospital de tratamento de tuberculose do Estado. “O Hospital Leonor Mendes de Barros é referência. Hoje temos em média 130 pacientes internados, e 98% de dependentes químicos”, conta Renato Marcelo da Silva, diretor técnico da unidade.
Mapa
No total, 556 municípios do Estado declararam ter o crack como droga presente, em levantamento realizado em 2012 para o Observatório do Crack. “Mais de 70% das cidades de São Paulo informaram ter problemas sérios com crack que impactam a gestão municipal. E as prefeituras não estão preparadas para lidar com essa situação complicada”, afirma o presidente da CNM, Paulo Ziulkoski.
As estimativas sobre os números de viciados no Estado são de pesquisas feitas em grandes cidades e o último estudo que trouxe dados específicos sobre São Paulo é o 2.º Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), de 2012, feito pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Uma subamostragem para São Paulo revelou que 165 mil pessoas haviam usado crack um ano antes da consulta e 486 mil, usado a droga uma vez na vida. Para o governo federal, os dados mais confiáveis são da Estimativa do Número de Usuários de Crack e/ou Similares nas Capitais do País, divulgada em setembro.
Eles apontam a existência de 350 mil usuários frequentes em São Paulo. Dependendo de como é feito o levantamento, no entanto, até os números oficiais divergem. Para o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, articulador da política antidrogas paulista, a quantidade de usuários de crack é maior. “Há 1 milhão no Brasil, 40% deles no Estado de São Paulo”, afirma.
Fonte: O Estado de S. Paulo